Paulo Autran
(1922 - 2007)
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui.. .
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje e é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)
Paulo Autran
Um pequeno apontamento biográfico
Paulo Autran nasceu no Rio de Janeiro, Brasil. Estudou Direito na capital paulista e formou-se em 1945.
Desapontado com a profissão de advogado, participou em algumas peças teatrais amadoras, tendo sido convidado a estrear profissionalmente com a peça Um Deus dormiu lá em casa.
Pôs grandes reticências ao convite, afirmando não ser actor profissional. Graças à “pressão” da amiga Tónia Carrero, veio a aceitar o desafio. A peça que estreou para o grande público em Dezembro de 1949, tornou-se um grande sucesso, tendo recebido alguns prémios.
Após seu primeiro êxito comercial, Autran deixou a advocacia e dedicou-se exclusivamente à carreira artística, dando prioridade ao teatro, a sua grande paixão. Chegou a actuar em alguns filmes e telenovelas, mas é no palco que desenvolveu a sua arte e se tornou conhecido, vindo a receber a alcunha de "O Senhor dos Palcos". No entanto, também será sempre lembrado pelas suas memoráveis actuações na televisão e no cinema, em especial na sua participação em Terra em Transe, um clássico de Glauber Rocha. Faleceu aos 85 anos, em S. Paulo.
Agradeço ao Gaspar o mp3 com a declamação do Paulo Autrán.
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